A Artista e a Doula – os mesmos paradigmas profissionais

Eu era produtora cultural. Escrevia projetos culturais, captava recursos via editais públicos e privados, administrava os recursos, prestava contas. Até que um dia escrevi um projeto para um certo edital. Era para uma prefeitura. Foi um ano difícil para a Cultura, enquanto mercado de trabalho. Ano de crise como disseram alguns. Para nós, só mais um ano difícil.

Arte e lazer não são políticas essenciais para os governos. Assim, os cortes sempre vêm primeiro para as pastas da cultura, do esporte e do lazer. Neste ano foi assim. Minguou o trabalho em todas as frentes. Públicas e particulares. Assim, quando o resultado daquele edital saiu, sentimos aliviados que podíamos respirar… e pagar nossas contas. Batalhávamos mês a mês cada produção, por menor que fosse para manter a dignidade como pessoa… e como artista… e quando chegou a data prevista para a execução deste projeto, a prefeitura, em ano eleitoral, comunicou que não iria executar a despesa.

Foi um momento difícil pessoalmente e profissionalmente. Neste ano decidi não escrever mais nenhum projeto para edital público. E para empresa privada… bem, também não escrevi mais. Depois desse episódio, passei a fazer mais e escrever bem menos. Mas fiquei refletindo… sobre o que passa no inconsciente coletivo quando se pensa sobre o artista.

Muito comum com a gente, quando alguém vinha conversar. Que legal! Você é artista! E além de fazer teatro você trabalha? Nossa resposta: Trabalho… eu trabalho com teatro… Mas a resposta mental era mais ou menos assim, com todo respeito e educação: Você acha que eu estou aqui de brincadeira? Ou outra pergunta: Nossa! Como você canta bem! Já pensou em cantar profissionalmente? Resposta: Sim… é o que estou fazendo… mas a resposta mental: Oi? Você acha que estou aqui por quê?

Parece óbvio… agora, principalmente pra mim que passei alguns anos trabalhando como artista, o caráter ilusório que as pessoas alimentam sobre o trabalho do artista. Não se sabe das horas de estudo, das horas, semanas, anos de pesquisa sobre determinada linguagem artística, sobre a construção viceral de um personagem, sobre o estudo das harmonias e solfejos, dedilhados, e sobre a busca incessante do figurino perfeito, da linguagem visual exata para a composição da cena que vai dar o impacto desejado, para comunicar o sentimento que escolhemos tocar.

Enfim, trabalho que se dá escondido dos olhos, mas o coração sente… percebe… e o artista se sente recompensado primariamente pelo sentimento da platéia. Certamente este é o principal alimento da arte.

Mas depois que cai o pano, e a maquiagem se escorre pelo ralo da torneira, junto com o sabão que lavou as mãos e o rosto do artista, ele tem que pegar o seu precioso soldo e ir, como uma pessoa comum, pagar suas contas, água, luz, telefone, aluguel. Na fila, muitas vezes nem se diferencia.

Hoje eu escolhi, depois da decepção com os editais públicos, outros rumos profissionais, não menos árduos, pois o pensamento do inconsciente coletivo permanece parecido com relação à profissão que escolhi. Os paradigmas continuam sob novas vestes. Agora sou Doula. E logo identificam nosso trabalho com a missão maravilhosa de ajudar a trazer bebês ao mundo. E vamos explicando que há também o empoderamento da mulher. E vamos trabalhando… disseminando informação, criando grupo de apoio, blog, Fan Page, página na internet, fazendo roda embaixo de árvore, em parque, em praça, e aonde mais for possível, em todo lugar, a qualquer hora, sabe-se quantas horas pode durar um parto… e neste tempo estamos lá. E a família em casa? Espera… filha… marido… esperam. A gente volta. Retorna. Só Deus sabe em que condições. Parto vaginal respeitoso, com mulher maravilhosamente empoderada? Voltamos como deusas vitoriosas de mais uma batalha vencida. Parto que não deu, virou cesa, sem certeza sobre a indicação, médico truculento, bebê mal recepcionado? A volta…, bem…, … difícil. E lá vamos nós recuperar as forças e continuar a luta. Informação, empoderamento, apoio e suporte contínuo.

E assim, com tanta beleza na missão, ainda fica no ar… seria ainda mais belo e puro, se não fosse maculado com as impurezas do capital. Seria angelical e doce, se pudéssemos nos pagar simplesmente com o prazer e a alegria de um parto bom e bem assistido, um bebê bem nascido, uma família unida em volta deste novo membro, com amor. Pleno e puro. Mas depois do parto, depois de estabelecida a amamentação, voltamos para casa e temos ainda que cozinhar, nutrir nossas crias, alimentar a relação com o companheiro, exaurida pela ausência. E ainda? Olha que coincidência! Pagar as contas!

Como artista, aplausos seriam minha recompensa, moedas no chapéu o suficiente. Como Doula, me restaria o sacerdócio, a paga com um leitão, mais do que bem pago. Só Deus sabe de mim. E o pensamento coletivo… ainda inconsciente.